Precisamos decolonizar o veganismo: construindo do sul para o sul

por | Nov 1, 2021

Por Martina Davidson

Militante antiopressão, vegana, lésbica, anarquista, transfeminista decolonial. Poeta antiespecista e lésbica. Mestra em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva pela Universidade Federal Fluminense e atualmente doutoranda do mesmo programa, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora do grupo de leitura sobre feminismos antiespecistas do Instituto Latino-americano de Estudos Críticos Animais (ILECA) e membra do corpo editorial da revista do ILECA. Pesquisadora do Laboratório de Ética Animal e Ambiental (UFF); do grupo Nós: dissidências feministas (CAPES) e do Núcleo de Inclusão Social (UFRJ).

La versión en castellano de este artículo se encuentra en la V Edición de Animales & Sociedad


Existe uma tendência paradoxal no mundo: a demanda por carne e produtos de origem animal está aumentando nos países do Sul Global e diminuindo nas nações do Norte Global – assim como na Austrália e Nova Zelândia – (Potts, 2016)[1]. Muitos estudos identificam que as razões que levam à redução do consumo desses produtos no Norte Global são 1) devido ao aumento de evidências sobre o impacto negativo de carne vermelha para a saúde, 2) pela preocupação crescente com os impactos ambientais que resultam da criação intensiva de animais[2] e 3) a preocupação ética ligada aos sistemas de criação intensivos de animais e aquilo que acontece nos abatedouros[3]. O que isto nos diz?

Isto permite deduzir que, os motivos que levaram à queda no consumo de produtos de origem animal em alguns países, não têm sido suficientes – mesmo que tenham aspectos aparentemente universalizáveis – para impulsionar o Veganismo[4] (ou mesmo diminuir o consumo de produtos de origem animal) nos países do Sul Global. Identificamos, então, um problema que se traduz no fato de que os conhecimentos e as razões que se relacionam com esse assunto no Norte Global não parecem bastar, ser acessíveis ou tropicalizadas o suficiente para contemplar as pessoas do Sul Global.

Desta forma, nos tornamos capazes de identificar um grande problema e, a partir disso, precisamos nos perguntar o porquê disso estar acontecendo. Pois bem, o conceito de “Vegano” foi oficialmente definido em 1945 por Donald Watson, no Reino Unido, como uma dieta que exige a exclusão do consumo de produtos de origem animal. Este conceito coloca corretamente os animais como o centro de uma preocupação prática relacionada ao Veganismo, mas não reconhece ou contempla um compromisso ético ou político antiespecista. Tampouco estabelece em suas entrelinhas a necessidade de estabelecer uma prática que se comprometa em não excluir minorias políticas ou de ser compatível com as reivindicações de movimentos sociais. Assim, o Veganismo se torna um movimento inacessível e eurocêntrico, excludente de grupos sociais que não têm outra escolha a não ser lutar de forma intersetorial/integrada. Por quê?

Bom, estamos falando de um Veganismo feito por homens brancos cisgêneros heterossexuais, europeus e de classe média/alta que não assumem um compromisso, desde a forjadura do conceito e prática, de ser inclusivo para com qualquer pessoa que não detenha essas características identitárias. Acho, assim, que o problema já se torna mais compreensível, certo? Desde o início, muitas minorias sociais (inclusive na Europa e em outros lugares do Norte Global) foram excluídas do processo de definição e construção desse Veganismo dominante, ou até mesmo de falar sobre a temática através de outras formas de expressão ou de cosmovisões distintas.

E acredite ou não, esse é o tipo de Veganismo que foi simplesmente importado para a América Latina, sem que se tenha desconstruído sua reflexão enquanto nicho de mercado capitalista ou suas marcas que não se adequam a particularidades de minorias políticas. Portanto, esse tipo de Veganismo é incapaz de representar as minorias sociais e os latino-americanas. Simplesmente impede, de antemão, a participação e o interesse de muitas pessoas. Nesse contexto, não posso deixar de me perguntar se esse é um dos motivos responsáveis ​​por afastar as pessoas do Veganismo.

A pergunta que fica é: como podemos tentar consertar isso? A realidade é que o problema já está sendo resolvido fora da Universidade, por pessoas militantes, movimentos e trabalho de base fortes, incríveis e revolucionários. É o caso do Movimento Afrovegano no Brasil, de grupas anarco-veganas na Argentina, do movimento brasileiro de veganismos periféricos, pela Liga Animal Palestina (Palestinian Animal League), entre outros. Porém, é uma responsabilidade política apontar para diversos caminhos capazes de enfrentar os problemas citados.

Por esse motivo, acredito que um desses imprescindíveis caminhos seja o de decolonizar o Veganismo para torná-lo uma postura ético-política intersetorial e popular. Apenas ao fazer isso é que, talvez, possamos dar uma resposta teórica ao problema apresentado neste texto. Ou seja, identifica-se a necessidade de construir veganismos críticos – das margens ao centro. É aqui que o uso de argumentos utilizados pelas feministas interseccionais e/ou decoloniais[5] ou de pessoas investigadoras da decolonialidade, a maioria delas da América Latina, pode nos servir como suleador[6] de um caminho que nos permita analisar críticas de forma a possibilitar a construção de veganismos inclusivos, anti-opressão e acessíveis.

«Por esse motivo, acredito que um desses imprescindíveis caminhos seja o de decolonizar o Veganismo para torná-lo uma postura ético-política intersetorial e popular»

Para iniciar algumas reflexões, precisamos reconhecer que o carnismo, o especismo e a cultura da carne são globalmente muito eficazes, inclusive em lugares como a América Latina. Precisamos também reconhecer que o Veganismo como nicho de mercado e noção importada, carrega marcas de classe, raça e gênero relacionadas à identidade tradicional dos colonizadores. Dito isso, acaba sendo visto como algo alcançável apenas pelas pessoas mais dominantes em uma sociedade (isto é, cisgêneros, heterossexuais, homens brancos, ricos, neurodominantes etc.).

Desta maneira, o Veganismo não é visto no Sul Global como um movimento social de luta por justiça, mas como o oposto: é visto como uma expressão das estruturas de poder e opressão que já existem. O Veganismo, e devemos reconhecer isso a partir de suas origens teóricas coloniais, tem uma raça – que é branca-, um gênero – que é cisgênero e heterossexual-, e uma classe – que é classe média e alta. Esse tipo de Veganismo acaba sendo visto, pelos olhos do público e das minorias políticas, como parte da mesma coisa contra a qual os movimentos sociais lutam. Nota-se aqui, que não busco dizer que a narrativa de antiespecismos seja linear e única, sempre existiram formas diferentes de se relacionar com quem não é humano, porém predominou teoricamente, devido a colonialidade, aquilo proveniente do que foi impulsionado por Watson no Reino Unido.

Diante deste cenário, precisamos, entretanto, considerar a realidade social dos países do Sul Global, uma vez que isto nos permite entender, em parte, por que um Veganismo importado, elitizado e colonial não faz sentido nenhum para a prática do Sul. Vejamos o panorama brasileiro, por exemplo: o Brasil é o país onde mais pessoas LGBT + são assassinadas no mundo. Além disso, de acordo com a ONU, um jovem negro é morto a cada 23 minutos no país; e em 2020, pelo menos uma mulher foi vítima de violência a cada 4 minutos (Anuário de Segurança Pública, 2020)[7]. Estamos falando de um lugar onde os corpos são alvos constantes de políticas de morte e onde a violência contra os animais humanos é muito alta e urgente. Para as minorias políticas, resistir torna-se uma questão de sobrevivência.

Então, falar sobre Veganismo e apresentá-lo da forma como está sendo feita, simplesmente não faz sentido. Esse processo precisa acontecer do Sul para o Sul, de forma que se manifeste enquanto uma pauta ética e política capaz de se encaixar (ou de ser visto como imprescindível) nas agendas de outros movimentos sociais. Como algo construído para animais, mas construído por pessoas também oprimidas. E é nesse processo que os feminismos interseccionais e/ou decoloniais podem contribuir.

Os feminismos do Sul Global não apenas criticaram pertinentemente os traços excludentes do feminismo hegemônico, mas mostraram com sua existência a necessidade de ruptura com movimentos sociais universais e únicos. Demonstraram a necessidade de entender a pluralidade de identidades e visões de mundo para a construção de uma luta engajada e inclusiva. Esses caminhos seguem os veganismos do Sul para o Sul. O de demonstrar a preocupação antiespecista de novas formas, de forma a reconhecer diferenças identitárias e políticas que não pedem um abandono da luta animalista, mas sim a construção de uma luta intersetorial, desconstrutora de marcas de classe, raça, gênero, sexualidades e geolocalização.

A colonialidade, então, apresenta uma narrativa única como aquela capaz de produzir conhecimento. E  através desse processo, acaba por ignorar, invisibilizar, silenciar e assassinar epistemes/visões de mundo de populações subalternizadas – caracterizadas como quaisquer indivíduos divergentes das categorias identitárias daqueles que estão a produzir conhecimentos validados pela maioria. No caso do Veganismo, não há porque ser diferente, sob diversas frentes.

Primeiramente, o Veganismo também tende a se colocar como um herói intervencionista, buscando agir de forma universal sobre todas as parcelas populacionais sem se preocupar com especificidades atreladas à gênero, raça, orientação sexual ou identidade de gênero, classe social ou geolocalização. Diz-se herói intervencionista não apenas porque o Veganismo chega enquanto imposição pré-determinada – e não a ser construída -, mas também porque muitas vezes assume a mentalidade de querer tirar a população das sombras através do conhecimento Vegano – venha comigo que irei lhe mostrar a verdade.

Em segundo lugar, porque o Veganismo branco, burguês, cis-hétero, masculinista e classista não dialogará com as populações subalternizadas da mesma forma que o feminismo europeu, branco, burguês, hétero e ocidental não o faz com as mulheres subalternizadas. E, quando o Veganismo não dialoga com essas pessoas, o sistema estrutural interconectado de opressões se fortalece e todos perdem, inclusive animais, que são o foco da luta antiespecista. Isto porque a pauta da opressão animal seria cada vez mais afastada pelas minorias políticas, assim como continuaria havendo um fortalecimento da estrutura Capitalista que apenas reforça e mantém a lógica especista – e opressiva. Sem um comprometimento com uma postura ético-política, é isto o que continuará acontecendo.Se quisermos a libertação animal, o fim do especismo, um mundo justo e livre de opressões, precisamos do comprometimento com uma perspectiva ética capaz de se inserir em um projeto decolonial.  Além disso, também é necessário, então, desconstruir esse Veganismo. Talvez criticá-lo substancialmente seja um bom ponto de partida.

«O Veganismo branco, burguês, cis-hétero, masculinista e classista não dialogará com as populações subalternizadas da mesma forma que o feminismo europeu, branco, burguês, hétero e ocidental não o faz com as mulheres subalternizadas»

Então, em outras palavras, é seguro dizer que um veganismo não crítico, de nicho de mercado, não intersetorial e colonizado, não se ajusta às projeções de justiça das pessoas Latina Americanas. Esse tipo de veganismo não apenas reforça a opressão contra os humanos, mas também os afasta ainda mais do combate ao especismo. Isso prejudica todos os envolvidos que não estão 100% livres de sofrer com a estrutura e poder de opressão. Animais são esquecidos. As minorias sociais logicamente consideram o Veganismo inacessível, excludente e opressor. Conseguir um monte de produtos veganos industrializados importados da Europa não parece algo muito importante, frente a tudo isto, não é? Pelo menos não tão importante quanto lutar pela agroecologia; contra o racismo; contra o machismo; contra a cisheteronormatividade; contra o capitalismo; e em prol de um Veganismo descolonizado intersetorial.

Somente decolonizando o veganismo e tornando-o popular, acessível e intersetorial na prática e na teoria, somente construindo um veganismo de e por latino-americanos marginalizados ou outras pessoas oprimidas, seremos capazes de lutar contra as opressões estruturais e criar um mundo mais justo para todos – incluindo os animais. Um Veganismo que reedita opressões contra mulheres, negros, asiáticos, indígenas, povos aborígenes, a comunidade LGBT +, pessoas deficientes, não é um veganismo antiespecista, porque não vai contra a estrutura de opressões e não reconhece os existência de conexão entre elas. Na verdade, esse tipo de Veganismo é incompatível com os valores que fazem do veganismo uma atitude ética e política, ou seja, uma luta contra todas as formas de opressão e subordinação de minorias políticas, mesmo que a luta contra o especismo continue sendo seu foco principal.

Portanto, espero que construindo e entendendo novos veganismos, comprometidos com ética, política e que carreguem indissociavelmente a intersetorialidade, acessibilidade e descolonização como critérios para prática, sejamos capazes de combater as injustiças e resistir. Lado a lado, desta forma, lutaremos até que todos os animais e animais humanos sejam livres de opressão.

[1] POTTS, Annie. Meat Culture. 1ª. ed. Leiden; Boston: Brill, 2016. 295 p. v. 17.

[2] Em função de não utilizar a negação de uma categoria para definição da subalternidade “animais”, optou-se, neste texto, pela utilização da palavra “animais” para se referir àqueles que não são da espécie humana e “animais humanos” para àqueles da espécie humana.

[3] POTTS, Annie. Meat Culture. 1ª. ed. Leiden; Boston: Brill, 2016. 295 p. v. 17.

[4] Utiliza-se a letra maiúscula para sinalizar que trata-se do Veganismo originado na Europa, assim como aquele amplamente veiculado na mídia e que predomina na interpretação, por parte da população, do que significa ser uma pessoa vegana.

[5] Para saber especificamente os argumentos de feminismos decoloniais, ver “Feminismo e projeto decoloniais: ferramentas críticas para repensar o veganismo” (Davidson, 2021). Disponível em: http://diversitates.uff.br/index.php/1diversitates-uff1/article/view/369

[6] Ao invés de usar a palavra “norteador”, significando guia, destino, caminho, opta-se por usar “suleador”, já que o texto se propõe a pensar na decolonialidade – em gerar do Sul para o Sul.

[7] Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/. Acesso: 13/06/2021.

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